“Recebemos tudo de Tua mão, seja honra, glória, ridicularização ou insultos. Permita que recebamos uma ou outra dessas coisas com igual alegria e gratidão; há pouca diferença entre elas e para nós não haveria nenhuma se só pensássemos no que é mais decisivo: que vem de Ti” – Soren Kierkegaard
O governo Bolsonaro acabou várias vezes. Para mim acabou em março de 2020, no começo da pandemia. E depois foi acabando de novo, e de novo. Acabou oficialmente e pela última vez no dia 30 de outubro do ano passado, mas mesmo morto, ele ainda conseguiu morrer mais uma vez no último dia 8 de janeiro, com a invasão das sedes dos três poderes, e essa segunda morte foi diferente para mim.
Francamente eu não esperava por isso. Fui totalmente surpreendido. É verdade que depois de deixar o governo escrevi sobre esse perigo, diante da invasão do capitólio nos EUA, e mencionei à ex-ministra Damares Alves que um movimento para negar o resultado das eleições seria o “Rubicão” de Bolsonaro. Pedi para ela não apoiar isso de jeito nenhum. Mas alguns sinais me diziam que o homem não faria isso. De fato, ele mesmo não o fez.
Os bolsonaristas radicais, no entanto, depois de meses de incitação do presidente e de uma legião de influenciadores, ocupando o espaço de sua omissão, o fizeram: levaram adiante a paixão golpista, às manifestações nos quartéis e agora à quebradeira e ao crime simbólico, violando as sedes dos três poderes. E esse final foi diferente para mim.
Há muito tempo sou odiado pelos líderes da esquerda evangélica por haver dificultado seus avanços entre a juventude. Mas ao aceitar compor o governo, como diretor de promoção e educação em direitos humanos dentro do MMFDH, cometi o que foi para eles o insulto final. Nunca mais me deram sossego. Foi e ainda é insulto atrás de insulto.
A verdade, no entanto, é que por errados que estejam os esquerdistas em sua concepção de cristianismo e de política, os últimos estertores do bolsonarismo me fazem ver que eles estavam certos, e eu errado, sobre esse movimento. O choque de domingo me mostrou que viram a ameaça com muito mais clareza do que eu. Eu via o bolsonarismo como algo próximo do carnavalesco e de vida curta, e só.
Aliás, como amigos próximos sabem, nós víamos, sim, um elemento perigoso na direita. Mas víamos também algumas coisas muito boas e algumas possibilidades em 2019: a defesa da vida e da família, o diálogo com a diretoria LGBT, um projeto para promover capital social em escolas públicas, a promoção da liberdade religiosa; e boas ideias em outros ministérios também. Com muitos conservadores ou liberais moderados aceitando participar do governo, acolhi a expectativa de que seria possível disputar o espaço dentro da gestão Bolsonaro, e ajudar a ala mais moderada a limitar os radicais.
De fato, eu fui visto assim por lá – a ex-ministra chegou a me dizer que havia gente advertindo-a contra mim, de que eu seria um comunista infiltrado, imaginem! Porque eu falava demais em “bem comum”.
Foi, é claro, uma aposta fracassada. As coisas foram piorando ao invés de melhorar, e a impossibilidade dessa moderação se consolidou com o acidente da pandemia, que levou o paciente já doentio à fatalidade: se havia chance daquela gestão tomar juízo, ela morreu ali. À época da minha saída do governo, publiquei a minha crítica ao bolsonarismo e ao presidente, e para mim o assunto havia se encerrado ali.
Mas foi mais do que uma aposta fracassada: foi, no meu caso, um erro de discernimento; a oposição de esquerda enxergou melhor o desprezo do bolsonarismo pelas instituições, que eu subestimei antes e depois de deixar o governo, e o perigo do nacionalismo religioso. E foi mais ainda que um erro de julgamento: foi arrogância também, acreditar que os moderados conseguiriam ter influência significativa, dado o poder do núcleo ideológico, que fui aos poucos compreendendo quando em Brasília.
E o que dizer de meus críticos? Eles estavam corretos, e eu errado: dar uma chance a Bolsonaro foi um erro e ponto final. É verdade que nunca votei nele, nem em 2018 nem em 2022, porque nunca o vi pessoalmente como meu representante. Insisto, apesar de alguns acusadores, em que nunca fui bolsonarista, assim como os tucanos no governo não são lulopetistas; nunca houve qualquer traço disso nas minhas mídias sociais. Mas ainda assim, subestimei o perigo e subestimei a voz da oposição, que mesmo errada em tantas coisas, estava certa nisso. Aceitei integrar a equipe e recomendei amigos. E depois de sair do governo, despachei sem mais os críticos de esquerda que pegaram no meu pé. Fui defensivo e pouco ensinável.
Agora penso que os cristãos evangélicos não deveriam ter apoiado Bolsonaro, e eu especialmente. Não me entendam mal: não estou dizendo que votar em Bolsonaro seria pecado per se, ou que seria ilegítimo, em termos eleitorais e políticos; como escrevi em um post ano passado, “é a democracia ou a guerra”. Se não reconhecemos um candidato legítimo e seus eleitores, a democracia acabou e a eleição foi uma farsa, um teatro. Por isso ainda defendo a normalidade do voto em Lula ou em Bolsonaro. Também defendo a legitimidade de cristãos integrarem a equipe de Bolsonaro, assim como a legitimidade dos que integrarão a equipe de Lula. Mas dizer que um voto é normal e legítimo não é o mesmo que dizer que esse voto seja a escolha correta, nem é justificar tudo o que passa na cabeça de cada eleitor, nem tudo o que ele fizer depois disso.
Em outras postagens eu disse que não precisava me arrepender por vários erros do governo que de fato nunca apoiei, e que foram injustamente cobrados de mim. Em minha defesa: o eleitor petista não é culpado do petrolão (eu mesmo já votei em Lula). O manifestante de esquerda não é culpado pelo black block. O islã inteiro não é culpado pelo wahabismo, ou pelo 11 de setembro. Os evangélicos de esquerda que trabalharam no governo Dilma não são culpados pelas pedaladas fiscais. Não quero culpabilizar todo o eleitorado de direita ou de esquerda por tudo o que seus candidatos fazem.
No entanto eu tenho algo, sim, do que me arrepender. Da minha miopia, da minha defensividade e da minha surdez eu tenho que me arrepender, e me arrependo. Me arrependo de, na qualidade de teólogo (e não de mero funcionário do governo), haver transmitido a impressão, ao aceitar o convite para o cargo, de que o bolsonarismo seria de alguma forma uma boa opção para os cristãos. Me arrependo de haver generalizado a crítica à esquerda, ignorando sua ala moderada (embora já tenha admitido isso antes). Me arrependo de não haver dado importância à idolatria verdeamarelista, tanto quanto dava à idolatria vermelha. Para meus alunos no FVI: meus vieses cognitivos me alcançaram!
Tenho consciência de que isso não muda tudo. Ainda tenho minhas posições. Não estou retirando a minha crítica à esquerda, nem negando as boas razões da direita, mas reconhecendo os pontos supracitados. Quero destacar – não para ofender ninguém, mas em nome da clareza e da honestidade – que a substância da minha crítica de longa data ao progressismo nacional e à esquerda evangélica permanece, e não estou me retratando dela. Estou me retratando a respeito do bolsonarismo e reconhecendo o mérito da esquerda na crítica ao nacionalismo cristão. Mas, enfim, o momento não pede discutir erros da esquerda, e sim os meus. Estou removendo a minha trave.
Posso estar errado? Sim; mas é o que vejo neste momento. De modo que seguiremos em conflito eclesiástico, intelectual e político.
Mas se isso não muda tudo, muda alguma coisa. Já tem algum tempo que o Senhor me proibiu de odiar os meus críticos, e a tomar cuidados para não transformar divergências em pretexto para destruir reputações. Ele também me tem feito orar por meus críticos regularmente; mas além disso terei que prestar mais atenção ao que eles dizem, gostando ou não. Tanto suas críticas honestas quanto as desonestas vieram da mão do Senhor, para me disciplinar. O Senhor me mostrou que eles também podem acertar onde eu errei, e estou grato a Ele por essa vergonha.