A família do premiado escritor amazonense Milton Hatoum tem uma experiência própria do grito por liberdade “do rio ao mar”, entoado historicamente pelo povo palestino.
Na verdade, a origem do autor é libanesa, país que também é banhado pelo mar mediterrâneo, assim como a Palestina. O avô de Hatoum atravessou esse mar e cruzou o mundo para chegar no Rio Amazonas, mais especificamente no encontro de afluentes que formam o rio, na cidade de Manaus.
“O primeiro imigrante da minha família veio de Beirute, foi meu avô paterno, que eu não conheci. Ele chegou no Recife, foi pra Belém e depois Manaus. Isso foi em 1904”, lembra o escritor ao narrar a trajetória da família que, no início, seguiu subindo o rio e foi parar em Rio Branco (AC), mas acabou voltando à capital amazonense.
“Eu nasci em Manaus e passei minha infância nesse, vamos dizer, pequeno Líbano, manaurabe, vamos dizer assim. Ouvindo histórias do Líbano, história de viagens e também convivendo com amazonenses, com manauaras, com estrangeiros”. Milton Hatoum atribui à mistura cultural a fundação da literatura em sua vida.
“Isso foi importante porque já na infância você percebe essas diferenças, a alteridade já está presente na tua infância”.
“E com isso você percebe que os outros existem, que outras culturas existem, que são importantes. Que não há uma hierarquia de culturas. A presença desse outro na tua infância já é uma riqueza”.
Mobilizado pelo massacre em curso na Faixa de Gaza, Hatoum é um crítico da atuação histórica de Israel que, segundo ele, é resultado do colonialismo desenvolvido pelo Ocidente.
Confira a entrevista na íntegra
Que recordações você tem de sua infância em Manaus?
Sempre foi uma cidade muito cosmopolita, porque é uma cidade portuária. Foi o maior porto fluvial da América do Sul durante o ciclo da borracha.
Uma cidade que foi ao mesmo tempo muito rica e muito pobre, como são essas cidades e sociedades da periferia do mundo.
Qual a origem do sobrenome Hatoum?
O primeiro imigrante da minha família veio de Beirute, foi meu avô paterno, que eu não conheci. Ele veio de Beirute, chegou no Recife, foi pra Belém e depois Manaus. Depois ele subiu O rio Amazonas, entrou no Purus e foi até Rio Branco.
Isso foi em 1904. Meu pai era bilingue. Meus avós maternos não”. Quer dizer, eles falavam português, mas sem influência.
E meu pai conversava em árabe com eles e com os amigos deles, fumando narguilé ou jogando gamão, enfim, conversando. Eles conversavam em árabe e eu ouvia a língua árabe e música árabe.
Isso foi importante porque já na infância você percebe essas diferenças, a alteridade já está presente na tua infância.
E com isso você percebe que os outros existem, que outras culturas existem, que são importantes. Que não há uma hierarquia de culturas. A presença desse outro na tua infância já é uma riqueza.
Porque as culturas, elas não são puras. As culturas são vasos comunicantes, elas dialogam o tempo todo, não há hierarquia de culturas.
Você acredita que a solução para o conflito na Faixa de Gaza é a criação de dois Estados?
Os judeus palestinos que constituíam entre 5 a 10% da população, naquela época, eles conviviam muito bem, harmoniosamente, com palestinos, cristãos e muçulmanos. Muçulmanos eram a maioria.
Então a criação de um Estado ali, vamos dizer, por europeus, a criação de Israel como foi feita, perturbou o Oriente Médio, porque foi um estado imposto que os estrangeiros que foram para lá devastaram centenas de vilarejos e aldeias e cidades da Palestina históricas
A criação de dois Estados, eu acho que seria hoje muito difícil.
Eu cito ao Eduard Said. Até 1992, ele acreditava nessa solução de dois Estados.
Mas quando ele visitou Israel e a Palestina e percebeu que havia inúmeras, centenas de colônias de judeus sionistas nos territórios palestinos, na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental, ele percebeu que essa solução de dois Estados era totalmente inócua.
Você tem que pensar além das questões religiosas. Elas não são as questões fundamentais. A questão fundamental é a terra, a quem pertence a essa terra. Não é o mandato de Deus, não é o cartório divino que deu essas terras.
Isso tem uma história, os palestinos estão lá há mais de 1500 anos, então isso é fundamental.