*Por Admir Ramos – Os créditos da citação em destaque são da jornalista, escritora e documentarista Eliane Brum (El País, 9.8.2019), integrante do comitê fundador, consultivo e julgador do Rainflorest Journalism Fund (RJF) que financia reportagens na Amazônia e nas outras florestas tropicai em parceria com o Centro Pulitzer.
Ano passado, a jornalista Eliane Brun lançou o Manifesto Manaus, no dia 12 de julho de 2019, durante um jantar no primeiro encontro de jornalistas do RJF, na capital do Estado do Amazonas, com a participação de cientistas reunidos para o encontro Sciencetelling Bootcamp & Explorer Spotlight, da National Geographic Society public. MANDONISMO GOVERNAMENTAL: Pela importância de sua fala à imprensa internacional pretendo contextualizar o Manifesto Manaus e traduzi-lo de modo que os interessados possam compreendê-lo na sua totalidade, considerando que o Amazonas é o maior estado da federação com mais de 90% de sua floresta tropical – fauna e flora terrestre e aquática – preservada, concentrando ainda a maior população indígena do Brasil quanto à diversidade cultural e linguística.
Manaus pode ser vista, segundo a jornalista Eliane Brum, como a escultura viva de um conflito iniciado em 1500, com a invasão europeia que causou a morte de centenas de milhares de homens e mulheres indígenas e a extinção de dezenas de povos. Nesse momento, em 2019, afirma à jornalista, “testemunhamos o início de um novo e desastroso capítulo”, fazendo referência direta a política ambiental bolsonarista.
A manifestante fundamenta sua fala recorrendo ao processo de colonização que se caracteriza pela exploração, saque e rapinagem das riquezas naturais dos povos indígenas, bem como a redução desses povos por meio da “guerra justa” como braço escravo na realização dos projetos coloniais, resultando no genocídio e etnocídio dos indígenas neste território. Com essa mesma matriz de pensamento, a jornalista analisa a política de Bolsonaro centrada na prática do neocolonialismo, dessa feita regido pela divisão do trabalho internacional ordenado pelo capitalismo industrial ajustado à prática autoritária sob o taco do mandonismo político do governo Bolsonaro.
BOLSONARISMO: O Brasil é um grande construtor de ruínas continentais, afirma a consultora Brun do RJF. Para a jornalista, “neste momento, uma forma de vida predatória chamada bolsonarismo assumiu o poder quase total e totalitário no Brasil. O principal projeto do bolsonarismo é justamente construir ruínas com método e com velocidade na floresta amazônica”.
O projeto de poder do governo Bolsonaro, na compreensão da autora do Manifesto, é a conversão das terras públicas que servem a todos, na medida em que garantem a preservação dos biomas naturais e a vida dos povos originários, em terras privadas para lucros de poucos.
“Estas terras, a maioria delas na floresta amazônica, são as terras públicas de usufruto dos povos indígenas, as terras públicas ocupadas pelos ribeirinhos (população que vive da pesca, da coleta do látex, da castanha e de outros frutos da floresta há mais de um século), e as terras de uso coletivo dos quilombolas (descendentes de escravos rebeldes que conquistaram seu direito aos territórios ocupados pelos antepassados)”, arremeta a jornalista.
Focada em sua manifestação aos jornalistas e aos cientistas em Manaus, Eliane Brun afirma que o bolsonarismo pode inclusive prescindir do presidente Jair Bolsonaro. Significa dizer que “o bolsonarismo, intimamente conectado à crise global das democracias, está influenciando toda a região amazônica, fazendo com que figuras que se mantiveram nos esgotos por anos, às vezes décadas, estejam hoje emergindo em outros países da América Latina onde também o destino da maior floresta topical do mundo está sendo decidido”.
Mais ainda, o bolsonarismo é mais que um conceito é uma prática política que representa uma ameaça não só para o Brasil, mas para o planeta. “Exatamente porque ele destrói a floresta estratégica para o controle do aquecimento global”.
ENFRENTAMENTO: O Manifesto Manaus merece ser amplamente discutido e apreciado nas academias e nos fóruns dos formadores de opinião com objetivo de se definir o que e como fazer. Com determinação e coragem a autora do Manifesto é categórica em afirmar: “somos nós que precisamos da ajuda dos povos da floresta. É deles o conhecimento sobre como viver apesar das ruínas. São eles os que têm experiência sobre como resistir às grandes forças de destruição. Para que tenhamos alguma chance de produzir movimento de resistência precisamos compreender que, nesta luta, nós não somos os protagonistas”.
Nesse enfrentamento é importante definir com clareza o campo de luta porque sem compreender nosso lugar nesse campo e, dispostos há compartilhar o pouco poder que temos, acredito que será muito difícil produzir movimento real. Dito isso, o Manifesto da jornalista Eliane Brun chama-nos atenção para o seguinte ponto: “somos nós que precisamos nos deixar ocupar, permitir que nosso corpo seja afetado por outras experiências de ser e de estar neste planeta. Não como uma violência, como foi a colonização da Amazônia e de seus povos, esta que está em processo até hoje, e em processo cada vez mais acelerado. Mas, desta vez, como troca, como mistura, como relação amorosa, como sexo consentido”.
Para se avançar nessa luta, a jornalista consultora Brun propõe começar esse movimento no Rainforest Journalism Fund, estimulando “a coautoria nos projetos de reportagem porque, a maneira mais efetiva de ocupar os espaços de poder é… ocupando os espaços de poder”.
Mais ainda, o Manifesto faz o seguinte chamamento para se enfrentar esse fato como desafio a ser vencido, “não porque somos cool (bonzinho) ou por concessão ou, por favor — e nem mesmo porque é o mais correto a se fazer —, mas porque precisamos muito aprender e porque podemos ensinar. Precisamos nos inventar de outro jeito se quisermos ter uma chance de enfrentar este momento em que a espécie humana se tornou ela mesma a catástrofe que temia”.
Repito, afirma Elaine Brun, Bolsonaro não é apenas uma ameaça para a Amazônia. É uma ameaça para o planeta exatamente porque é uma ameaça para a Amazônia. “Diante desta força acelerada de destruição que é o bolsonarismo nós, de todas as nacionalidades, precisamos fazer como os africanos escravizados que se rebelaram contra o opressor. Precisamos nos aquilombar. E, como não sabemos fazer isso, terá que ter a humildade de aprender com quem sabe”.
O melhor — e o mais potente — do Brasil atual e da Amazônia, em todas as regiões, são as periferias que reivindicam o lugar de centro. Esta verdade tem que servir de baliza para a nossa luta, afirma a jornalista em seu Manifesto. “Nossa melhor chance é nos somar às forças do real centro do mundo onde a disputa pelo futuro é travada, às vezes a bala.” É a esse movimento contra o bolsonarismo articulado com jornalistas e cientistas que nós, afirma a jornalista Eliane Brun, em seu Manifesto Manaus, “precisamos humildemente servir. Espero que os povos da floresta possam depois de tudo o que fizemos contra seus corpos, nos aceitar ao seu lado na luta”, conclui.
Fonte: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/08/09/opinion/1565386635_311270.html
(*) É professor, antropólogo e coordenador Projeto Jaraqui e do NCPAM do Departamento de Ciências Sociais da UFAM E-Mail: ademiramos@hotmail.com