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O último dia no Palácio – História escrita por Milton Hatoum publicada no Estadão

O grito ecoou no palácio, assustou as emas, o lago estremeceu. Um coro de vozes femininas bradou:“O sofrimento não passa sem deixar rastros e testemunhas”.

O último dia no Palácio - História escrita por Milton Hatoum publicada no Estadão

“E você pagará caro por todos os órfãos da pandemia, por todos os mortos e por nós, os enlutados”.

História por Milton Hatoum -“Onde estão os outros?”, perguntou para si mesmo, olhando ao redor. “De onde vem tanto silêncio? Os fiéis e as orações sumiram. Fingiam orar por mim?”

Viu no jardim o corre-corre alegre das emas. Até elas! De repente, com uma pontada de ódio, percebeu que dormira quatro anos num palácio desenhado por mãos comunistas; o ódio cresceu quando se lembrou de outros palácios e monumentos. “Até a Catedral e a Igrejinha”, murmurou, rangendo os dentes. “Pode uma coisa dessa? Um comunista projetar templos católicos?”

Sentiu uma pressão no peito, em seguida, uma coceira louca nas pernas. Mais que a solidão, sentiu a ira dos inconformados pela derrota; depois sentiu-se abandonado pelos pares mais fiéis, civis e militares. Abriu as mãos magras: “O poder escorreu entre os meus dedos como se fosse água”. E gritou: “Água imunda, ouviram? Onde vocês estão?”

O grito ecoou no palácio, assustou as emas, o lago estremeceu. Um coro de vozes femininas bradou:

“O sofrimento não passa sem deixar rastros e testemunhas”.

Girou o corpo: nem uma vivalma no salão. Levou um susto quando viu no espelho seu rosto deformado pela ira. Outro coro, agora masculino, entoou:

“E você pagará caro por todos os órfãos da pandemia, por todos os mortos e por nós, os enlutados”.