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PCC cria Tribunal do Crime especializado em delitos sexuais e sequestra, tortura e sentencia casal

Terminada a fase de “instrução do processo”, as autoridades criminais telefonaram para uma suposta “turma julgadora do caso”, ou seja, os “juízes” do PCC que iriam definir a sentença a que ela deveria ser submetida.

PCC cria Tribunal do Crime especializado em delitos sexuais e sequestra, tortura e sentencia casal

Os membros deste Tribunal do Crime foram presos ou estão sendo procurados

No dia 14 de agosto do ano passado, por volta das 21h, a atual esposa de Francisco André Cerino Galvão estava na calçada, em frente a sua casa, no bairro de Campo Belo II, em Campinas (SP).

Ela estava na rua, angustiada, esperando alguma notícia da enteada, a Andressa, de 12 anos. É que, algumas horas antes, Francisco tinha sido avisado por Paloma de Souza Silveira, sua ex-mulher (mãe de Andressa), que a menina tinha desaparecido de casa na noite anterior.

Foi quando encostou ali um carro com quatro indivíduos dentro. A esposa de Francisco reconheceu um deles, era amigo de Paloma. Eles disseram que a menina tinha aparecido de volta na casa da mãe, e convidaram os dois (Francisco e a mulher) para irem vê-la, convite aceito no mesmo minuto.

Começava ali um pesadelo de 12 dias e 12 noites vivido pela esposa de Francisco. Seu nome não será revelado. Ela é até hoje sobrevivente e testemunha protegida da Polícia Civil de Campinas. Já o marido não teve a mesma sorte.

Começava ali mais um processo penal sob a jurisdição do Primeiro Comando da Capital, o PCC. A partir daquele momento, Francisco e sua esposa se encontravam sob custódia do Tribunal do Crime, para serem interrogados, processados e sentenciados pelos delito de que eram acusados: abuso sexual de menor.

O que se narra a partir daqui é o que a polícia e o Ministério Público descobriram acerca dos fatos ocorridos daquele dia 12 de fevereiro em diante. Francisco está desaparecido desde então. Policiais e promotores o dão como morto, executado pela facção. Sua esposa e a menina Andressa mudaram de casa, a polícia mantém em sigilo seu paradeiro.

Através do caso, é possível compreender como funciona e quais são os métodos de “investigação” e julgamento do poder paralelo instalado nas periferias das maiores cidades do país.

 – A denúncia e o sequestro dos “acusados”

Os quatro homens que levaram Francisco e sua mulher de casa naquele 12 de fevereiro eram todos membros do Tribunal do Crime.

Assim que entraram no veículo, as vítimas (que, no tribunal do Poder Paralelo, eram consideradas réus) receberam a notícia de que estavam sendo presas pelo Comando, para serem interrogadas sobre a denúncia apresentada por Paloma, mãe de Andressa, a de que Francisco teria abusado da própria filha, com a conivência da mulher. Segundo a polícia, isso jamais ocorreu, e Paloma teria forjado a acusação para se vingar de Francisco, que obtivera a guarda da menina junto à Justiça.

As autoridades constituídas do crime que levaram a cabo os interrogatórios sob custódia eram: Maicon Bruno Santos Lima, Alexandre da Costa Lima (o Gordinho), Guilherme Avelino Bueno do Livramento (o Balotelli), Ismael de Goes Cavalcante (o Magrão), Michele de Jesus Virtis (a Gladiadora), Ana Paula dos Santos (a Pequena), Shawana Larissa Oliveira de Nascimento (a Lari) e a própria Paloma, mãe de Andressa, que aliás levou a menina para acompanhar todas as sessões de interrogatório (e tortura) da “fase de instrução”.

Todos os envolvidos foram denunciados pelo MP-SP e estão sendo julgados por homicídio, cárcere privado, agressão e corrupção de menor. Metade está aguardando o julgamento na cadeia. A outra está foragida.

2 – O cárcere e os interrogatórios

As autoridades do Tribunal do Crime percorreram um curto trajeto, trocaram de veículo, colocaram capuzes nos “acusados” e conduziram os “custodiados” ao local do “julgamento”, um cativeiro localizado na rua Mario de Araújo Novaes, n. 346, no mesmo bairro de Campo Belo II, em Campinas.

No imóvel, estavam Paloma, sua filha Andressa, Ana Paula (Pequena) e Shawana (Lari).

Totalmente subjugado, Francisco André foi questionado sobre o suposto abuso sexual. Negou e negou tudo. Apanhou para ver se confessava, com socos, chutes e pancadas com uma barra de metal. O mesmo tratamento foi dado à sua esposa, com uma diferença: nela, as agressões utilizadas como método de busca da confissão eram desferidas unicamente pelas mulheres, enquanto Francisco foi espancado unicamente pelos homens.

Trecho de decisão judicial que narra os procedimentos adotados pelo Tribunal do Crime em Campinas (crédito: TJ-SP)

Os golpes atingiram suas pernas, braços, rostos e cabeças. A mulher e seu companheiro passaram a madrugada sendo “interrogados” e acusados do suposto abuso, sendo constantemente agredidos fisicamente e ameaçados pelos denunciados, que exigiam que confessassem a prática delituosa.

No dia seguinte, a autoridade criminal Michele (Gladiadora), utilizando um veículo não identificado, levou a vítima protegida a um cativeiro na cidade de Sumaré, enquanto Maicon, Ismael (Magrão), Guilherme (Baloteli), e Alexandre (Gordinho), utilizando o veículo VW/Jetta, placa DSH-3827, pertencente a este último, levaram Francisco.

No percurso, o veículo foi parado por policiais militares, que desconfiaram dos ocupantes e do carro, bastante avariado e com vidros quebrados. Francisco estava muito machucado, os policiais conversaram em particular com ele, mas o pai de Andressa, sabendo que a esposa estava sob custódia do Tribunal, mentiu que tinha se ferido no dia anterior em uma briga durante um jogo de futbol. Acabaram liberados. Francisco nunca mais foi visto desde então.

Trecho de relatório de inteligência da Polícia Civil de São Paulo que narra o encontro com os membros do Tribunal do Crime e o “acusado” Francisco (crédito: Polícia Civil de SP)

A partir daí, a esposa de Francisco foi levada para um novo cárcere, no município de Bragança Paulista. Ficou mais dez longos dias sendo interrogada, apanhando e quase não sendo alimentada. Nunca mais viu o marido.

3 – “A sentença” e o desaparecimento de Francisco

Terminada a fase de “instrução do processo”, as autoridades criminais telefonaram para uma suposta “turma julgadora do caso”, ou seja, os “juízes” do PCC que iriam definir a sentença a que ela deveria ser submetida. Segundo a própria vítima, ela foi declarada inocente e liberada próxima à rodoviária da cidade. Recebeu ainda R$ 96 das autoridades criminais, para que pudesse pegar um ônibus e regressar à sua casa. Antes disso, fora avisada: “se abrir a boca, morre, você e toda a sua família”.

Antes de partir, ela perguntou o que aconteceria com seu marido. Não obteve resposta.

No dia seguinte, foi a uma delegacia, contou tudo o que sofrera e disse que achava que tinham matado seu marido. A Polícia Civil abriu investigação sobre o ocorrido. Interrogou metade dos membros do Tribunal do Crime, a outra metade fugiu de suas casas assim que soube estar sendo procurada pela polícia. Ouviu ainda mais dez testemunhas, produziu laudos periciais, realizou reconhecimentos fotográficos dos suspeitos, identificou a participação de parte destes em outros julgamentos do poder paralelo, realizou mais de uma dezena de diligêngias tentando encontrar Francisco, vivo ou morto. Não encontrou.

O relatório final foi produzido e entregue ao Ministério Público quatro meses depois, que prontamente ofertou denúncia contra todos os acusados. A Justiça acatou as acusações, instaurou processos penais oficiais, colocou a mulher de Francisco no programa de proteção a testemunhas, enviou a menina Andressa ao Conselho Tutelar e emitiu mandados de prisão preventiva, tudo conforme consta nos autos públicos do processo penal número 1506533-78.2022.8.26.0114, de mais de mil páginas, corrente no Tribunal de Justiça de São Paulo.

Os membros deste Tribunal do Crime foram presos ou estão sendo procurados, mas eles são apenas um dos grupos atuantes na Justiça do PCC, que segue ativa nas periferias de Campinas, de São Paulo, de Ribeirão Preto e sabe-se lá quantas mais cidades brasileiras. E assim segue o Brasil no início deste 2024, com boa parte de sua população vivendo desse jeito, sob duas jurisdições, a oficial do Estado Brasileiro, e a do Primeiro Comando da Capital. Até quando?